No debate da reforma administrativa, que está parada no Congresso, ganhou força o argumento de que o Estado brasileiro está inchado. Quem estuda o serviço público afirma que é preciso revisar o concurso público, reformular as carreiras existentes, adaptar o efetivo às mudanças no mercado de trabalho e aprimorar a avaliação de desempenho. No entanto, refuta a ideia de que haja excesso gente na máquina pública.
“É um verdadeiro mito essa concepção de explosão na força de trabalho do serviço público no Brasil. Uma simples comparação internacional mostra isso”, diz o pesquisador Félix Lopez, um dos coordenadores do Atlas do Estado Brasileiro, plataforma do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) que reúne dados sobre servidores públicos.
Dos 91 milhões de trabalhadores brasileiros, 11,3 milhões estão atuando no setor público com diferentes tipos de contratação. Representam 12,45% do total.
O número é parecido com o do México, onde 12,24% atuam no serviço público. Mas é menor que o dos Estados Unidos. O país que é referência global de valorização da iniciativa privada tem 13,55% dos trabalhadores no setor público.
A fatia também é maior no vizinho Chile. Nesse país, muito citado pelas reformas liberais, que reduziram o peso do Estado, os servidores representam 13,10% da força de trabalho.
Mais que os números, é fundamental levar em conta a política pública de cada país, diz Félix Lopez. “O Brasil é ambicioso em suas políticas de universalização de saúde e educação, o que demanda mais gente. Ainda assim está no nível intermediário na comparação internacional.”
O efetivo brasileiro está bem atrás das nações que optaram pelo Estado de bem-estar social na Europa: os servidores representam 30,22% dos trabalhadores na Noruega, e 29,28% na Suécia.
Na média dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), os funcionários públicos são 23,48% do total de trabalhadores.
O número de servidores no Brasil teve crescimento exponencial, da ordem de 400%, nos municípios, desde o início dos anos 1990, alta que ocorreu para atender os serviços de saúde, educação e assistência social previstos na Constituição de 1988, diz o pesquisador.
Ele aponta que professores, médicos e enfermeiros somam 40% do funcionalismo municipal: “A expansão foi conectada à demanda da sociedade, ou da Constituição, como queiram nomear, mas o fato é que foi feita para atender à população”.
Ainda assim, há deficiências nas áreas que exigem mais qualificação. Pesquisa publicada neste mês pela CNM (Confederação Nacional dos Municípios) mostra que um terço das cidades tem dificuldade para preencher vagas de médicos, incluindo grandes centros urbanos.
“Nas cidades menores, é difícil encontrar gente para contabilidade, engenheiro… quanto mais qualificado o servidor precisa ser, mais difícil fica. Mas o problema engrossa no médico,” diz Paulo Ziulkoski, presidente da CNM.
Baixos salários, exigência de carga horária de 40 horas, escassez de recursos e deficiências na infraestrutura pública são apontados como alguns dos problemas para atrair o profissional.
Considerando a esfera federal, o volume de servidores simplesmente encolheu, com exceção dos professores universitários, categoria que cresceu. O número de estatutários em 2023 é inferior ao de 1989, afirma Pedro Masson, Coordenador-geral de Ciência de Dados da Diretoria de Altos Estudos da Enap (Escola Nacional de Administração Pública)
“São quase 100 mil servidores a menos entre os concursados”, afirma Masson. “O ‘mais Brasil e menos Brasília’ já aconteceu na força de trabalho do serviço público, e a imagem de órgãos federais abarrotados de gente fazendo nada é uma caricatura.”
A transição digital pode cobrir naturalmente algumas atividades. Mais de 4.000 serviços estão digitalizados, incluindo a chamada prova de vida, que confirma atividades de aposentados e pensionistas do INSS. Ele é feito pelo órgão via cruzamento de dados e também pode ocorrer por meio de biometria no aplicativo Meu INSS do beneficiário.
No entanto, inúmeras atividades na esfera federal estão com falta de gente, especialmente em agências reguladoras, institutos de pesquisas e órgãos ambientais.
Em recente artigo na Folha, os empresários Horácio Lafer Piva, Pedro Passos e Pedro Wongtschowski criticaram a permanência do Estado em áreas que poderiam ser mais bem gerenciadas pelo setor privado, caso de portos e aeroportos.
No entanto, defenderam as carreiras típicas de Estado, como as da Receita federal ou agências reguladoras, e questionaram a falta de profissionais para o bom funcionamento de órgãos públicos que consideram fundamentais para a economia.
Entre os órgãos com carência de profissionais listados no artigo estão a CVM (Comissão de Valores Mobiliários), que regula funcionamento do mercado de capitais, a Embrapa, cuja pesquisa agropecuária é fundamental para a projeção do Brasil nessa área, e o Inpi (Instituto Nacional da Propriedade Industrial), órgão de registro de patentes.
À reportagem, Wongtschowski, acionista do grupo Ultra, dono das marcas Ipiranga, Ultragaz e Ultracargo, disse que a intenção do artigo foi fazer uma alerta.
“Há uma postura simplista e generalizada da elite brasileira de sempre achar que o Estado é grande demais. Criou-se, assim, um consenso, que é falso, de que há um excesso generalizado de funcionários públicos”, afirmou. “No entanto, há instituições de respeito que estão altamente deficitárias em termos de volume de pessoal.”
O servidor público clássico, concursado, com estabilidade, vocação e qualificado tem uma outra função na estrutura pública, afirma o cientista político Fernando Luiz Abrucio, pesquisador e professor da FGV EPPG (Escola de Políticas Públicas e Governo da Fundação Getúlio Vargas).
“Ele é o representante do Estado, e de suas normas e deveres, e esse papel ficou claro durante a pandemia e no governo de Jair Bolsonaro, quando áreas fragilizadas foram defendidas por parte funcionalismo”, diz Abrucio.
“Imagine se não tivéssemos os profissionais do SUS atuando na pandemia —foram eles que evitaram uma tragédia maior.”
Ele diz que o mesmo vale para inúmeros servidores do Ibama, dos ministérios do Trabalho, da Educação, do Meio Ambiente, para citar alguns.
Servidores da Receita Federal no Aeroporto de Guarulhos se recusaram a liberar joias trazidas da Arabia Saudade na comitiva do ministro de Minas e Energia no país, sem o pagamento do imposto, ainda que pressionados pelo ministro e pelo chefe da Receita.
Outro exemplo de servidor que atuou em defesa das normas do Estado é o do indigenista Bruno Araújo Pereira, que, mesmo licenciado da Funai (Fundação Nacional do Índio), atuava na defesa Terra Indígena Vale do Javari (AM) quando foi assassinado.
“Essa burocracia profissional do Estado resiste quando necessário”, afirma Abrucio.. “Não precisamos de menos servidores, mas de mais profissionalização da máquina estatal. Não há saída fora disso se queremos ter desenvolvimento econômico.”
Fonte: Folha de S. Paulo