Uma visão usual e corrente de razoável parcela da comunidade jurídica enxerga na disfunção da autonomia orçamentária a razão maior das deficiências do Poder Judiciário. Embora assegurada na Constituição da República, a autonomia administrativa e financeira da Justiça encontraria óbice intransponível na preponderância do Poder Executivo, o único “dono do cofre”. Talvez uma outra ordem de ideias pudesse merecer reflexão, num momento em que recrudescem as greves funcionais na Justiça comum estadual e federal.
O Poder Judiciário sempre se conservou à margem do jogo democrático, essencial à preservação do modelo de freios e contrapesos adotado pelo ordenamento republicano. Natural certo comedimento, pois a ele está reservada a missão de dizer a última palavra, com isso potencial a possibilidade de conflitar com os outros dois Poderes. Mas isso não pode inibir a Justiça de se relacionar com as funções encarregadas de editar a normatividade e, portanto, estabelecer as regras do jogo, e de observá-la sem controvérsias, atribuição do governo.
No convívio harmônico e independente, o Judiciário tem pretensões que interessam ao Estado e à democracia – esta inviável sem o funcionamento efetivo e eficiente de uma Justiça independente. Por isso é que suas postulações orçamentárias precisam ser bem elaboradas, após um profícuo planejamento, exercício ao qual o Poder Judiciário não está afeiçoado. A curtíssima gestão bienal de seus comandos impede projetos de longo curso. O personalismo não raro prepondera e implica abandono de iniciativas pretéritas, em nome de uma originalidade nem sempre bem situada.
Dois anos passam muito rapidamente e a constatação de que “a roda se reinventa” a cada nova gestão é a prova conclusiva de que é difícil estabelecer uma política pública de consenso para a Justiça brasileira. Tudo poderia ser mais simples se o planejamento, que é obrigatório e vinculativo para o poder público, fosse a regra imperante no seio do Judiciário. Verdade que há um discurso a prestigiar a planificação, mas a prática nem sempre coincide com ele.
Um planejamento precisa ser algo consistente e substancioso. Abranger a prestação jurisdicional como um todo. Atento ao comando constitucional que impõe uma prestação jurisdicional célere e efetiva. Tanto que o constituinte derivado assegurou às partes um julgamento jurisdicional rápido e, portanto, oportuno.
Mas para isso é necessário rever as praxes impeditivas da presteza. Não se diga que tudo é resultado da lei. Acusa-se o Código de Processo – tanto o Civil como o Penal – de prestigiar procedimentos procrastinatórios. O legislador tem oferecido sua contribuição para simplificar o processo e para permitir a implementação das tecnologias de comunicação e de informação, no sentido de otimizá-lo. Se o processo virtual não é uma realidade incontroversa e integral, não é por culpa da legislação. Esta já permite a utilização de tecnologias e avanços que transformaram a sociedade mundial. Embora tais avanços já estejam a serviço de outros segmentos – bancos, empresas, universidade, mídia – e até dos demais Poderes, o Judiciário é muito módico em se servir deles.
As comunicações, por exemplo, poderiam ter sido aperfeiçoadas mediante uso mais frequente da internet, hoje tão segura com a certificação digital. Não é crível que em pleno século 21 o chamamento da parte a juízo e sua ciência dos demais atos do processo estejam entregues a uma pessoa física. Por isso mesmo é que o quadro de meirinhos poderia ser readequado, com aproveitamento de seus integrantes em outras funções, mais imprescindíveis ao funcionamento da Justiça.
Uma gestão consentânea com o arsenal de instrumentos disponíveis e já comprovadamente bem-sucedida não hesitaria em ousar. Adotadas estratégias que reverteram crises empresariais e métodos de administração que revolucionaram novos empreendimentos, talvez a Justiça já pudesse oferecer um préstimo de maior qualidade ao jurisdicionado.
Desde a estruturação da Justiça no início da República, adotada a nomenclatura longeva das Ordenações, quantas não foram as inovações no trato do pessoal funcional? Faz sentido preservar denominações que perderam o sentido e necessitam de urgente adequação à contemporaneidade?
Os planos de carreira, os critérios de recrutamento, o conteúdo dos processos seletivos, que não podem ignorar as necessidades de um serviço público tendente à completa informatização, já poderiam ter sido propostos há décadas. Mas para isso, na arena democrática, é necessário ajustar as necessidades e urgências com os demais Poderes. Esse o ritual do convívio harmônico e independente entre as funções estatais.
Se isso não se faz, ou ao menos com eficácia plena, continuará o aparente estranhamento entre os três organismos detentores da soberania estatal. Um Judiciário capaz de planejar e de dialogar não terá dificuldades irremovíveis no encaminhamento de suas pretensões ao Legislativo e ao Executivo. Não faltarão recursos financeiros para projetos consistentes, bem elaborados e factíveis.
Assim, não é verdade absoluta, ao menos por todos plenamente visível e insofismável, que o Judiciário viva a esmolar ao governo. Pode ser que ele não tenha sabido conduzir seus pleitos junto ao Poder que, se detém a primazia arrecadatória, tem também obrigações decorrentes da saudável Lei de Responsabilidade Fiscal.
O vislumbre de uma perspectiva mais animadora deriva de uma profícua atuação do Conselho Nacional de Justiça. A prioridade conferida à vocação de órgão de planejamento do Judiciário, até sua criação inexistente, permitirá o ajuste de toda a Justiça brasileira a reclamos de seu aggiornamento.
Essa é a esperança de quem pretende uma Justiça efetiva, eficiente e eficaz.
Fonte: O Estado de São Paulo por José Renato Nalini